Apenas duas pessoas conversando (Novembro/2023)
Tinha acabado de ler o livro The Practice of Spiritual Direction (1982) enquanto encontrava-me num hospital, acompanhando minha mãe que havia feito uma intervenção cirúrgica. Logo me veio à mente o psicanalista Christian Dunker, em seu livro O palhaço e o psicanalista (2019), quando indica que a escuta é uma arte que se aprende, e que como todo aprendizado envolve seus riscos naquilo que chamou de quatro “agás” – hospitalidade, hospital, hospício e hospedeiro – como atitudes ou disposições básicas para uma boa escuta.
Tomei emprestado essas ideias para desenvolver minha reação ao livro de Willian A. Barry e William J. Connolly e percebi que os hospitais são lugares de escuta: os profissionais de saúde escutam o paciente, ouvem suas queixas, suas dores, escutam seus batimentos, escutam os aparelhos, escutam os familiares, escutam seus saberes.
Mas, a meu ver, os hospitais são lugares de maior escuta é de si mesmo e de Deus, principalmente para aquele que o busca: o paciente/enfermo ou o acompanhante. Na solidão de nossas dores e na procura de nossas curas, o tal filme da vida acaba passando em nossa cabeça. E não há filme sem protagonista, sem diretor, sem cenário, sem fotografia, sem figurino, sem coadjuvantes.
O filme de nossas vidas expõe nossas experiências afetivas com Deus, através de lugares, pessoas, acontecimentos. Ali, inerte, protagonizando a vida, vamos nos dando conta de nosso “princípio e fundamento”, como nos diz Santo Inácio: “o homem é criado para….”. Ali, no hospital, sem podermos controlar a agenda, prestamos mais atenção aos nossos propósitos e tomamos mais consciência de nosso relacionamento com Deus. E vamos nos damos conta do quanto somos assistidos nessa jornada, nesse filme da vida.
Para além dos hospitais, está a hospitalidade, lugar onde vivemos o confronto entre vida espiritual, emocional e moral. Não são essas nossas fontes de enfermidades? Jesus, que curava os doentes, primeiro os ouvia, oferecia hospedagem e fazia-se hospital. Para curar e salvar vidas para Deus Reino e para o Reino, integrava, na dimensão espiritual, o corpo, o coração e a cabeça.
Talvez hoje, careçamos dessa percepção de que precisamos de hospedagem, de hospitalidade, de ser e de encontrar parada no caminho, ajuda no trajeto, companhia na estrada, antes que cheguemos aos hospitais. Talvez hoje, o aumento das práticas religiosas do Oriente seja um indicativo de que nossa dimensão espiritual quer ser abrigada, hospedada, escutada, acompanhada e até revelada na dinâmica da vida moderna com toda sua inteireza.
Na hospedagem, vale tanto o cuidado na disposição material de acolher: os lençóis limpos e macios, a mesa posta, a flor sobre a mesa; as cores e fotos familiares na parede; quanto a acolhida revelada na palavra. Palavra hospitaleira, palavra dada, entregue, ofertada. Palavra que abraça e consola – dá solo. Onde há a crença na palavra do Outro ou do outro, é onde se hospeda o coração e a cabeça e corpo repousa. Onde se crê que a Palavra legitima e aponta os caminhos, as forças são restauradas.
Nesse momento, minha hospedagem foi o recorte do livro onde se lê: “Inácio se dispôs a escolher caminhos não percorridos porque sabia que Deus o guiaria e o sustentaria ao longo dele”. Achei ali a locação para a cena do momento. Inácio passou pelo hospital e se determinou a buscar hospedagem e experimentar hospitalidades. E foi aí que aprendeu a prestar atenção no Caminho, a prestar atenção no Senhor que o acompanhava e a não aceitar se deter nas hospedagens sem, contudo, ignorá-las.
O risco será sempre o de se parar num hospício, de viver ensimesmado, de não querer sair dos hospitais. De não buscar o caminho que revela nossas fontes de resistências e o modo como reagimos a Deus. O risco será sempre o de uma alienação emocional, de não dirigirmos essa película, e ela se tornar aqueles filmes que nada comunicam. O risco será sempre o da paralisia.
Nossa relação com Deus conta a nossa história, dá-se em tempos e espaços orantes. E nossa oração mostra, com muita lucidez, se estamos dando atenção à luz, no diálogo com o Senhor, ou à cegueira imposta pela qualidade de nosso diálogo. E sabemos o quanto somos assistidos, se percebemos quem nos acompanha no caminho, quem nos oferece hospedagem.
Desejei, então ter uma atitude mais contemplativa, ser mais peregrina e valorizar mais as jornadas e o que elas me revelam. Desejei mais escutas, mas hospedagens, mais hospitalidade. Acompanhar o outro nos lugares de encontro com o Senhor e ter cocompanhia, ouvir e contar histórias de viajantes. Ajudar a ver os sinais do caminho e, assim, crescer eu mesma na confiança, no compromisso, na comunicação, no conhecimento.
Por fim, a leitura me fez perceber que para ser hospedagem, precisa-se aceitar o lugar da incontrolabilidade do Outro, do mistério que é todo relacionamento com Deus; mas também favorecer o lugar da humanidade partilhada, da espontaneidade, do humor, do respeito à experiência peregrina do outro. Seremos assim apenas duas pessoas conversando enquanto o caminho se abre.
Por Profª Angélica Chapim Rangel Hanz Engel, Coordenadora da Formação Cristã.
Referências;
BARRY e CONNOLLY. William A. William J. The Practice of Spiritual Direction,1982 Tradução: Edições Loyola, 1987. Adaptação: P. Elcio José de Toledo, SJ.
DUNKER, Christian Ingo Lenz e THEBAS, Cláudio. O palhaço e o psicanalista: como escutar os outros pode transformar vidas. São Paulo: Planeta do Brasil, 2019.